quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Pousar. Um ato de AMOR.





Uma das melhores coisas da vida é voar; mas, voar, mesmo: mão no manche, mão na manete, asas ao vento.
Numa palavra: pilotar.
E é o que eu mais tenho feito na minha vida inteira.
Com 5 anos de idade, eu já voava com o meu aviãozinho. Enganchava as pernas no pescoço de um regador de jardim e ficava, numa boa, a sobrevoar floresta acreana. Sonhos de uma infância feliz.
Acordava feliz da vida. Tinha passado uma noite de passarinho. De volta do colégio, ia cuidar da minha frota aérea. Dobrava uma folha de papel almaço, dava-lhe um feitio de avião e eis que o bichinho decolava da ponta dos meus dedos, levado pelo Leste, que sempre foi o vento da minha estimação.
Nessa fase da minha vida de aviador de mentirinha, não me lembro de ter feito um pouso imperfeito. Era tudo manteiga.
Só vim a conhecer pouso placado muito mais tarde, quando já voava de verdade.
É, aí, nesse momento do voo que se dá o enlace das duas almas – a do homem e a do avião. Afinidade eletiva, crismada pela terrível Lei da Gravidade.
Pelo menos na aviação de recreio, está para nascer o piloto que se sujeite a levar pra casa o gosto amargo de um mau pouso. É mais fácil levar um bom desaforo.



Ou o cara enche a mão e arremete, dali mesmo, ou, então, retorna ao ponto de espera, decola e repete tudo de novo, decidido a debelar a humilhação, com um toque suave no tapete de veludo da pista em uso.
A medicina aeronáutica comprova que, na operação de pouso, o batimento cardíaco do piloto aumenta cerca de 10%. É o efeito da adrenalina, um hormônio que a suprarrenal injeta na corrente sanguínea e que aguça a lucidez, melhora o vigor físico e a força da mente. É uma espécie de droga do bem, como a endorfina.
A decolagem é um ato mecânico, inteiramente despido de poesia. O piloto dá “full-power”, procura manter a reta e deixa o resto por conta do avião que acaba subindo por suas próprias forças.



Uma vez lá em cima, o voo, o chamado reto horizontal, é puro enlevo. É só contemplação. A companhia não pode ser mais romântica: nuvens, estrelas, brisas, arco-íris, a castidade do azul do céu. É poesia em movimento.



Já o pouso, amigo, o pouso é mais que um fenômeno físico. É mais que um milagre da aerodinâmica. É mais o convívio ameno com as forças da natureza. O pouso é um culto. Tem ritos próprios.
A liturgia começa muito antes da chegada à pista propriamente dita: o avião tem que repassar etapas, sacramentadas por um rigoroso responsório, via fonia, entre ele e a torre de comando: o piloto, posição por posição, reporta a entrada no circuito, depois, a perna do vento, depois a perna base, até que chega a rampa da reta final. A esta altura o avião já deve estar pronto para o pouso iminente.
A rampa da descida é uma ladeira imaginária em pleno ar.
Motor em marcha lenta. A reta final.
O sussurro do vento é a trilha sonora do pouso.
O avião, agora, deixa de ser máquina e vira uma pluma que o homem vem manejando, docemente, como se afagasse o rosto da mulher amada. Núpcias à vista.
Por fim, o “flair”, que vem a ser o êxtase que prenuncia o clímax.
É aí, então, que o piloto pressente, no tino do próprio corpo, o instante quase sensual em que o avião deve tocar a pista.
Não existe, fora o amor, gozo maior que um pouso de manteiga...Aviação quem sabe!

Texto de Armando Nogueira

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